quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O cheiro do mijo

Corri, corri, corri, percebi que ainda estava perto e todos me olhavam, cochichavam coisas que eu não conseguia entender, a moréia dentuça me espreitando – se correr o bicho pega e se ficar o bicho come – a íngua doendo pra cacete, a espada enferrujada não ajudava pelo contrário, só pesava nas costas e eu corria, corria, corria, nada de água fresca, um calor imenso, uma sede louca consumindo meus pensamentos. Passei por um lugar que era um misto de feio e interessante. O sorriso daquele cara era falso, desafiador e queria desmascará-lo, mas não podia parar, a moréia continuava me seguindo, com seus dentes afiados, brilhando sob a luz do sol, a igreja com seu sino das doze horas, a fome roncando na barriga, a correria não cessava, o desespero aumentando, todos olhando e ninguém estendendo a mão, só cochichando, cochichando coisas absurdas que eu não entendia, por fim cheguei a beira de um penhasco - ou morria em baixo sobre as pedras ou morria em cima pelos dentes do bicho solto e feroz que nadava no ar. Decidi pular, sempre tive vontade de pular no nada e nadar, nadar, nadar. Fechei os olhos e me joguei, sem medo, porque eu tinha mais medo do lugar estranho e interessante, dos cochichos do povo, do sino do meio dia, então fui caindo, devagar, sem pressa e quando parecia que não sobraria mais que pedaços de mim, comecei a flutuar, lindo, leve, belo, mas quando dei por mim, despertava, havia dormido bêbado na calçada e o cheiro do mijo invadiu definitivo as minhas narinas. Aos pouco comecei a redobrar as forças e restabelecer contato com os pensamentos e lembranças da noite anterior. O sol quase a pino, quase ao ponto das badaladas do sino e tudo foi clareando, o trabalho, a saída dele às dezoito horas em ponto, a cervejinha com os amigos, a gata de vestido verde, o amigo dela de olhos verdes, os amigos indo embora, o casal me olhando, eu indo ao banheiro, o cheiro de mijo do banheiro, o rapaz de belos olhos amigo da gata urinando ao meu lado, puxando conversa, depois um apartamento ali perto e muita vodka, muito uísque, algumas cervejas que eu não conhecia e por fim, já na cama o resto de uma garrafa de vinho e tudo foi muito louco, muito intenso, e agora esse cheiro que me enjoa e me excita, minha cabeça rodando e doendo, alguns transeuntes que passam e me olham, falam alguma coisa meio que cochichando e a estátua de um gato selvagem no portão em minha frente, era ele a moréia que me assustava. Estou a atrasado para o trabalho, aliás que exploda aquela repartição, quero minha cama, quero seguir viagem, voando, deslizando num ar cheio de cheiros, quero quem sabe tirar a máscara daquele homem sorridente falso ao extremo falastrão do nada e depois curtir a leveza, o cansaço, a cama, o sonho.

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Parte de mim - o que vira escrita...

Os que me olham, me sentem e me acomapanham

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