segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Ver[de] perto; Ver[de] longe – Saguis na janela

Merthiolate; Mercúrio; Calêndula; Precisava por alguma coisa sobre o corte no dedo. Não era comum ir à cozinha para demorar tanto. Mas sua visita adorava doce. Além disso, também decidiu fazer um prato salgado. Maldita hora. Merthiolate ardia. Mercúrio melava demais. E sua mãe sempre dizia: “Não há nada de melhor que calêndula para estancar um corte.” Doce de leite. Doce deleite. Aprendiz de qualquer coisa, inúmeros contextos desafogados, conseguia até desfrutar de momentos com ele, sentia-se mais usada que qualquer outra coisa, mas eram tempos difíceis, já não se encontrava homens de verdade, com cheiro, jeito, voz, corpo, sentimento de homem, e o melhor que poderia fazer era segurar, mas se agarrar mesmo a este que, quando vinha, lhe fazia ir à cozinha, esquentar a barriga no fogão. Quase meio de tarde, sol de outono, os saguis rondando a janela a espera da banana e papa de farinha, refeição vespertina que ela insistia em por. Certamente às dezoito horas ele chegaria, ainda com a farda do exército brasileiro, fumando seu cigarro de palha de milho, que ele dizia não fazer tanto mal quanto os industrializados; quando chegava à porta colocava um pouco de loção pós-barba para abafar o cheiro do mesmo cigarro que ela não gostava. Ela gostava desse ritual quase matrimonial dele, de agradá-la pelo menos nesse aspecto. Vez ou outra ele lhe trazia uma flor, um bombom de côco, mas na maioria das vezes, na mão direita o quepe e a esquerda segurando a mochila de mesmo material da farda e nada de prendas. Na frequência do rádio Dolores Duran cantando Cry me a river. Ela sempre chorava quando ouvia essa canção. Estava tudo pronto. O dedo já não sangrava mais, porém latejava. Pôs o jarro de margaridas e boninas sobre a mesa, tudo estava em ordem, faltava só à presença dele. Era hora de se banhar e por o vestido novo de cambraia branca. Demorou mais que de costume no asseio, isso não a incomodava, pelo contrário, gostava da sensação de frescor. Ajeitou o cabelo em um coque, perfumou-se com seiva de patchouli. Faltava pouco tempo, o suficiente para ela passar um café e assistir o primeiro capítulo da novela. Não tardou a ouvir os passos pesados de coturnos no corredor. O cheiro característico de fumaça e pós-barba chegando logo as suas narinas. O bater dos nós dos dedos na porta, os saguis observando tudo, ela deixando cair os cabelos sobre os ombros, logo em seguida abrindo a porta. Ele sorri com o canto da boca, ela dá a passagem com outro sorriso de olhos no chão. Ele nada diz apenas a beija calorosamente ela se entrega lânguida; tenta falar do doce e ele sussurra em seu ouvido que ela que é um doce; os saguis começam a deixar a janela pela galha do jambeiro; ele investiga seu corpo com suas mãos pesadas e ásperas, ela amolece ainda mais, pensa no corte do dedo; ele se abaixa enquanto levanta o vestido tão bem engomado, beija-lhe a barriga, ela se arrepia dos pés a cabeça, ele pergunta de quem é ela e então num pulo ela se encaixa em seus quadris e grita: sua, toda sua. Ele enlouquece, ela também. Sem muito esforço ele a carrega até o quarto e sorve seu corpo com a ânsia de recruta interno há trinta dias. Ela o consome com a esperança de um casamento de trinta anos. Ambos deleitam-se em doce de leite. Cada um com seus pensamentos enquanto o ranger dos pés da cama no chão de tacos de madeira. No fundo se amavam mais do que podiam perceber. No raso estavam presos a essa rotina camuflada. Doces. Salgado suor. Saguis na janela. Vendo verde farda de perto. Vendo verde horizonte longe. Apenas um fim de semana juntos e mais trinta dias de espera.

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