sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Eu, ela, uma taça de vinho francês e a samambaia

Ardia o calor, algo verdadeiramente insuportável. O cheiro de tinta fazendo queimar a saudade em meu peito. Fui sentar à porta de casa, apenar uma luz âmbar encandeando a moradia, a taça à mão, segunda da noite, um extraordinário vinho francês e Maria Bethânia cantando com seu jeito único, meio que narrando toda essa ebulição do meu ser. Não havia com quem conversar, olhei para o lado, apenas a samambaia, nada mais, tudo além. Mesmo com tão pouco, minha boca começava a mudar de cor por conta do vinho e meus pensamentos em chamas. Lembranças são sempre lembranças, mas em certo ponto começam a se tornar ilusões perdidas, porque sempre que buscamos contar a alguém, enfeitamos tanto, que mais são o que gostaríamos que tivesse sido do que o que realmente foram. Vários cigarros. Recitando ao mesmo tempo em que ela jogava as palavras aos ventos: “Senhores sou um poeta, um multipétalo uivo, um defeito e ando com uma camisa de vento ao contrário do esqueleto, sou um instantâneo das coisas apanhadas em delito de paixão, sou uma impudência a mesa posta, de um verso onde o possa escrever. Ó subalimentados do sonho a poesia é para comer.” * Percebo-me assim, quem sabe, cansado de tudo, do calor, da falta de vento, da samambaia calada em minha frente, do gosto travoso do vinho, de Bethânia tão certa e tão clara no que diz, que cedo-me ao sono, concentro-me em minha viagem única e particular, afinal, o mundo não vai parar de girar e nem muito menos deixarei de sentir saudade. E samambaias não falam. Nem escutam. São apenas samambaias dependuradas.

*Colagem feita por Maria Bethânia a partir do Poema A defesa do poeta de Natália Correia.

Um comentário:

Unknown disse...

Saudade.... Ainda bem que não sou o único que experimenta disso.

Parte de mim - o que vira escrita...

Os que me olham, me sentem e me acomapanham

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